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Mostrando postagens de 2021

Enxofre

 Eu não preciso de um dia pra lembrar meus mortos. A constância do cheiro de enxofre que nos ronda nesses quase dois anos não me deixa esquecer dos que já se foram, e que ultimamente vão  de uma forma  que a maioria de nós sequer imaginou ser possível um dia. E aqui  ficamos com as perdas, com o hiato, imaginando aquilo que poderia ter sido, mas não será. Perdemos mais, perdemos quase dois anos. A vida suspensa a espera de. De que mesmo? Seguimos anestesiados e o que aflora agora não é um novo mundo de golfinhos em águas cristalinas,  ao contrário, o ódio não é mais latente, é constante e potente. No novo normal a estranheza não é boa. Não somos os mesmos e não somos melhores. O tiro saiu pela culatra. O tiro. Volto aqui comigo e sinto que roubaram algo irrecuperável, mas que mesmo assim todos já se adaptaram. É a vida. Ou foi  o medo da morte? Que ao invés de regenerar recrudesceu o que há de pior em nós? Espero pelo caos. Climatico, social, existêncial.  E como diria Darwin, quem for

Ravena Porcelana Azul

 Eu tenho pensando muito no meu pai ultimamente. Nem sei porque ou talvez saiba e não precise dizer. Só sentir. Lembro das nossas conversas infindáveis madrugada adentro. Filosofando sobre a vida, tentando enganar a morte, como ja disse ali, outro dia, noutra esquina. Na real, nunca soube se ele era ateu. Sempre que começavamos a falar do etéreo, descambava para as agruras bem materias que sofrera na época do seminário. Quando ficou mais adoentado, ja no finalzinho da jornada, pedia pra que a gente rezasse, que pedisse a Deus por ele. Isso me surprendia. Só aí tive a dimensão da fragilidade daquele momento. Hoje li que a morte é um mistério que desorganiza e comove. É isso. A pulsação de morte que persiste nesses dias tão desgraçadamente iguais desorganiza e comove. Hoje não há mais a expectativa pela melhora do jovem intubado. O artista. Brilhante. Se foi. Hoje a dor continua em milhares de anônimos. Uma luta desigual, desumana, negligenciada por quem deveria ser o cerne. Eu não,  eu

Espera, mãe. Espera que chego já!

 O vento trouxe o cheiro do pó de arroz que a minha mãe usava quando eu era bem menor, já que pequena nunca fui, apesar de meu pai sempre me chamar de miúda. Eu lembrei que dias assim, de ceu azul e sol alto, traziam enorme angústia quando ela atravessava o portão e saia. Se abaixava pra me beijar e dizer que já voltava, e deixava comigo só o cheiro do pó de arroz.  Era com esse cheiro que eu a acompanhava entre as grades da janela  até ela sumir no final da rua. Nunca um cheiro representou tanto pra mim a sensação de perda  como o cheiro desse pó de arroz. Custava a me afastar da janela e volta e meia  conferia para ver se já havia um retorno de quem prometera jamais me abandonar. E sim, ela sempre voltava. O cheiro do pó de arroz voltava  primeiro e anunciava a felicidade que viria a seguir.  Agora era o cheiro da felicidade, do reencontro, nao mais da angústia.  Só pra dizer que era preu estar de férias e visitando a minha mãe. O corona não deixou.  To aqui com a cara encostada na g